Considerado um dos principais santuários ecológicos da Amazônia, o Parque Estadual Cristalino II, no norte de Mato Grosso, corre risco de desaparecer caso o governo estadual não entre com recurso contra a decisão recente do Tribunal de Justiça do estado (TJMT) de anular a criação do parque. Em carta publicada na revista “Science” nesta quinta (25), especialistas alertam que essa decisão abre um precedente perigoso para a anulação de outros parques estaduais e pode agravar ainda mais a crise climática.
Segundo o texto, assinado por pesquisadores do Instituto Centro de Vida (ICV), do Observatório Socioambiental de Mato Grosso, da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o estado de Mato Grosso está sob forte ameaça por ações do agronegócio que priorizam o lucro em detrimento da proteção ambiental.
A ação de anulação do Parque Estadual Cristalino II tramita na justiça estadual desde 2011 e é movida por uma empresa privada que contesta o processo formal de consulta pública para criação da unidade, alegando ter propriedades na região. O caso foi julgado a favor da empresa em abril de 2023. Para a Advocacia-Geral da União (AGU), a empresa detém títulos fraudulentos, supostamente emitidos pelo Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat), órgão fundiário estadual.
O Parque Estadual Cristalino II foi criado pelo governo local em 30 de maio de 2001. A área, localizada a cerca de 800 quilômetros da capital Cuiabá, possui 118 mil hectares e é rica em fauna e flora típicas da região. Segundo a carta, o parque também desempenha um papel crucial na contenção do desmatamento no sudeste da Amazônia.
Mato Grosso lidera o desmatamento entre os estados da Amazônia Legal em 2024, de acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). O estado também detém recordes na produção do agronegócio nacional, sendo responsável, somente neste ano, por 18,9% das exportações do setor, segundo dados do Ministério da Agricultura e Pecuária. Diante desses dados, entidades alertam para a necessidade urgente de medidas de proteção ambiental para a região.
Para um dos autores do artigo, Philip Fearnside, do Inpa, a decisão de anular a criação do parque estadual beneficia uma empresa acusada de grilagem, considerada um dos principais vetores do desmatamento. “Decisões monocráticas, proferidas por um único juiz, podem desencadear outras similares, ameaçando não apenas o bioma amazônico em Mato Grosso, mas também outros, como o Cerrado, que é altamente cobiçado pelo agronegócio e possui relativamente pouca área protegida em unidades de conservação”.
De acordo com Marcondes Coelho, analista socioambiental do Instituto Centro de Vida (ICV) e autor principal do artigo, a decisão do TJMT é contrária a outras jurisprudências na justiça brasileira. “A suposta falta de consulta, que neste caso é contestada, não justifica a extinção de parques. Ainda mais em um processo com evidências sobre a legalidade de sua criação e as suspeitas de fraudes da parte autora que contesta a existência da área protegida”, complementa. O analista também lembra que essa decisão pode se tornar uma ameaça ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação, o SNUC, criado pela Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000.
O pesquisador da USP e UFAM Lucas Ferrante, também coautor do estudo, ressalta que a Amazônia está próxima do seu ponto de não retorno, em relação ao desmatamento tolerado. “Se cruzarmos essa linha, as consequências para o Brasil serão severas”. Ele cita como exemplos o avanço da crise climática, o colapso da agricultura e do abastecimento humano e a emergência de um ciclo de novas pandemias.
A carta ressalta a necessidade urgente de uma ação para barrar essa decisão. Os especialistas sugerem ao governo local e Ministério Público Estadual apelar ao Superior Tribunal de Justiça ou até mesmo ao Supremo Tribunal Federal. De acordo com o Ministério Público Estadual, o TJMT determinou que o processo seja enviado ao Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) de 2º Grau para tentativa de conciliação entre as partes. A data da audiência ainda não foi divulgada.
Representando a sociedade civil, organizações socioambientais têm atuado em defesa do parque, e também, cobrado posicionamento mais efetivo do Governo de Mato Grosso.
Somam forças em uma campanha permanente, além do Observatório Socioambiental de Mato Grosso e o Instituto Centro de Vida (ICV), o Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad-MT), a Fundação Ecológica Cristalino (FEC) e a Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação (Rede Pró-UC).